quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

O canto de Suindara

Tudo corria na mais perfeita ordem. Os dias passaram a serem todos iguais, moradores do palácio sempre acordavam, banhavam-se, tomavam o dejejum e partiam para seus afazeres diários. Avó e neta, sempre, empós as refeições se recolhiam em uma das salas de piano, lá, ficavam até a hora do almoço. Após o repasto tiravam suas sestas costumeiras; em seguida, iam para a sala de costura onde bordavam e falavam sobre coisas amenas. Apenas as segundas-feiras a rotina era alterada, já que pela manhã, a viscondessa, tinha o hábito de receber seus administradores, contadores, advogados, compradores dos produtos que suas vinícolas e quintas produziam fornecedores de produtos. Já na sexta-feira avó e neta iam a um orfanato, onde a velha senhora fazia doações, doava quantias enormes de dinheiro. Possuía um espírito beneficente e gostava de passar isso para a neta. A velha sempre dizia em suas visitas: Veja filha, o problema de muitas pessoas abastadas é que elas pensam apenas em si. Isso é errado! Pois se temos condições de ajudar ao próximo deveremos fazer isso. Esse é um dos dez mandamentos de Nosso Senhor: Amar o próximo como a ti mesmo! Em raras ocasiões as duas deixavam as dependências do palácio para fazerem visitações de quaisquer fundos, sejam elas formais, de cerimônia, de compromisso e visitas de afeto.
A noite passada havia sido atípica, porquanto, por volta das dezoito horas ancestres e neta se arrumou e partiu rumo à casa de um velho amigo da viscondessa. Tratava-se do palácio do barão e da baronesa de Açores; velhos amigos da viscondessa e do falecido marido. Foi uma noite alegre de folguedo. Beberam, falaram coisas amenas, discutiu política, arte, gastronomia; porém, por volta das vinte duas horas regressaram para casa. A noite estava linda. Uma bela lua cheia clareava tudo, no céu não havia uma nuvem sequer. Estrelas salpicadas na abóbada celeste pareciam joias; o dia parecia brindar avó e neta com aquele lindo luar. Assim que entraram em casa e foram para seus aposentos; a viração mudou e uma chuva torrencial caiu sobre toda Lisboa. E um nevoeiro recaiu sobre todo o lugarejo.
–– Meu Deus, como pode?! Agora mesmo a noite estava lindíssima, na verdade, não havia sequer sinal de chuva e agora essa tempestade. –– Disse a menina Helena enquanto era colocada na cama pela criada.  
–– Pois é, senhorita! – Respondeu Magnólia, sua criada pessoal.
Helena deitou-se e não tardou a pegar no sono. A chuva durou a noite inteira, mas na manhã seguinte, quando a menina abriu os olhos, a chuva havia passado deixando apenas o nevoeiro. Por volta das oito horas da manhã Magnólia adentrou o quarto, abriu todas as janelas e portas francesas, depois seguiu para o leito e abrindo o pesado acortinado do dossel disse:
–– Bom dia, mademoiselle! 
Helena se espreguiçou e com um lindo sorriso meneou:
–– Bom dia, querida Magnólia. – Ela afastou as cobertas e se apoiou sobre os travesseiros. –– Parou de chover! Ou ainda chovendo?
–– A chuva cessou sim, mas há uma pesada bruma. – Respondeu Magnólia que ajudava a menina a se erguer da cama. –– Creio que o dia será assim o dia inteiro.
–– Por que você acha isso? –– Indagou Anna Helena que há essa hora já estava com os pés calçados no chinelinho de pelúcia.
–– Aprendi com os negros, lá no Brasil, há ler o tempo.
–– Às vezes me esqueço de que você possui sangue de africano. 
As amigas caíram na gargalhada. Uma hora depois, Anna Helena, já se havia banhado e estava vestida, preparada para o dejejum. Antes de descer a escada Helena parou diante de um espelho, que ficava pendurado sobre um aparador, no final do corredor.
–– E minha avó, já desceu?
–– Até a hora a que vim ajudar-te, ela não havia descido, mas agora, já não sei.... Creio que já tenha descido, sim!  
Depois de todo ritual de preparação Anna Helena e a criada desceram para a sala de jantar. Achou estranho quando lá chegou e não encontrou a avó a cabeceira. Assustada foi à cozinha, imaginando que poderia encontrá-la lá. Sem obter qualquer resposta correu de volta para a escadaria, e após subir dois lances de escada e caminhar alguns minutos, a jovem, acompanhada de Magnólia, bateu na porta do quarto.
–– Vovó... Vovó... –– Gritava ela desesperada sem saber o que fazer. A porta estava trancada e ela era apenas uma menina. Mandou que chamassem o jardineiro, para que pudesse desobstruir o caminho.
A porta foi arrombada. Anna Helena caminhou pelo aposento, em passos arrastados, pé ante pé, parecia pressentir o pior. Seu coração começara a palpitar, sentira um aperto, uma dor aguda que a deixou moribunda. Arrastando-se pelo cômodo foi aproximando-se do leito, onde a avó ainda mantinha o dossel fechado. Seus olhos encheram-se de lagrimas e com uma voz semicerrada murmurou:
–– Vovó... Vovó... A senhora está aí? Está tudo bem? –– A essa altura Helena estava parada diante do acortinado. Com uma das mãos ela se apoiava no jardineiro e a outra começava a puxar as cortinas. Ela tentou mais duas vezes manter contato com a avó. De nada adiantou. Ainda com temor do que poderia achar, do lado de dentro das cortinas, ela se virou mais uma vez para a governanta e concluiu. –– Tens certeza, que minha avó não se levantou cedo e foi à casa de algum amigo?
–– Oui, mademoiselle... Votre grand-mère n'a pas se lever tôt! si cela était arrivé je sais, puisque je suis le premier à me lever dans cette maison. La cloche qu'elle utilise pour appeler les domestique est par La porte de ma chambre!
–– Desculpe-me, senhora Suzane. –– Helena virou-se para a governanta e de forma imperativa disse. –– A senhorita poderia falar em minha língua, porquanto, não estou com cabeça para traduzir o que diz.
–– Excusez moi mademoiselle! –– A governanta, que até então estava sobre o umbral da porta, adentrou o quarto e parou diante do jardineiro –– Sim, senhorita.... Creio que vossa avó não se levantou cedo. Se isso houvesse acontecido eu saberia, já que, sou a última a me deitar e a primeira a me erguer. Além do mais, sou eu mesma quem cuida do toilet da viscondessa.
Helena ficou ainda mais tensa com a última frase da governanta. Do outro lado do acortinado não se ouviu um gemido, um planteado, um clamor... um som que denotasse vida! Leninha, então, puxou a cortina do sobrecéu e se deparou com a cena mais dantesca, aterradora, que seus olhos de guria viram até aquele momento. Sim, ela viu o corpo de sua avó, ali, caído, e quase sem vida. A viscondessa já possuía uma figura cadavérica, mórbida, o viço rosado de sua pele, o tom rosáceo de seus lábios havia perdido todo o tono vital. Nem de longe lembrava aquela senhora, que senhora? Uma dama com talhe grandioso, imperial, de olhos âmbar. Com um olhar ímpar; olhos que demonstravam muito mais que apenas uma mulher fútil, arrogante, autoritária. Demonstrava empáfia, contudo, grande generosidade e doçura. Helena buscava em sua mente a lembrança de quando havia visto a avó destratar alguém, nem mesmo com seus subordinados, criados e pessoas estranhas; sempre tão educada, gentil, doce e faceira em seus diálogos.
Aproximou-se da cama, afastou os lençóis e tocou-lhe a face. O rosto estava frio e a pele com uma palidez mórbida, os lábios gélidos e roxos. Nem mesmo em seu sonho mais remoto desejou viver para ver aquilo. Como podia sua avó está morta? Perguntava-se. Não conseguia acreditar! Pulou sobre a cama. Sentou-se junto à cabeceira e tentou puxar o corpo inerte para seu colo. Tentou uma, duas, três vezes; mas sem obter nenhum resultado pediu auxílio ao jardineiro, que a ajudou sem demora. Com a ajuda do criado ela conseguiu puxá-la para junto de sim. Naquele mesmo instante seus olhos se encheram de lágrimas, e a menina não conseguiu conte-las. O quarto ficou repleto de criados; por que, assim que a notícia: de que a viscondessa estava mal, chegou à cozinha. Todos, quando digo todos, são todos mesmo! Os criados deixaram seus afazeres e correram para o andar superior. A viscondessa sempre fora uma boa patroa; jamais, deixara faltar nada a seus subordinados. Em uma de suas boas ações: pagou o velório e o jazido da mãe de uma de suas criadas. Em outra ocasião: pagou todo o tratamento médico do filho do confeiteiro, que fazia seus doces favoritos. E olha, que nem funcionário sua era. O mancebo trabalhava em uma das confeitarias mais famosas de Lisboa.
A casa ficou uma balburdia só. Os criados não sabiam o que fazer, corria para cá, para lá, atordoados, muitos se pegaram a Deus. Outros a seus santos de devoção, durante apenas aquelas primeiras horas do dia, os criados haviam acendido mais velas no oratório da casa que durante um mês de sarau. Tamanho era o temor de perder sua senhora.
–– Meu Deus... –– Murmurava um enato subia as escadas. –– O que será de nós? Não deixe que nossa senhora morra... –– Dizia o criado entre choramingo e gemidos –– precisamos muito dela aqui! 
A antessala, que ligava o toucador à alcova, onde ficavam os oratórios com imagens de diversos Santos foi tomada, pelas criadas que ajoelhadas oravam. Muitas aos prantos rogavam à Santa Rainha Isabel, que salvasse sua patroa. Outras oravam o terço, os rosários se apegaram a qualquer santo que fosse. Leninha pegou o braço da avó e verificou se ainda havia algum sopro de vida; não demorou muito para constatar que a senhora vivia. Helena, então, mandou que abrissem todas as portas e janelas do quarto.
–– Abram, abram! –– Berrava ela –– Por favor, abram todas as janelas... ela precisa respirar! –– Uma a uma, janelas e portas francesas, começaram a ser abertas.
Uma brisa fresca e reconfortante tomou conta do ambiente retirando todo aquele ar pesado e mórbido, que havia no quarto.
–– Já vou senhora! –– Disse ele, enquanto deixava o aposento.
–– Vá... vá. Senhor Joaquim, vá depressa –– disse Leninha, enquanto acariciava o rosto da avó. – Magnólia.... Pegue mais cobertores; ela está com muito frio –– lembrou-se da cena que havia visto ainda menina: a morte de um escravo velho lá na senzala de sua fazenda: – Meu Deus! Por que isso, agora? Estávamos tão felizes?!
Magnólia trouxe os cobertores mais depressa que pode.
–– Querida, prometa-me algo? –– Disse a viscondessa, ainda na expiação da morte, agonizando.
Uma sensação trevosa fez com que todos se arrepiassem, deixando-os apavorados. Avó e neta viram o espírito da morte rondando o cômodo, e quando ele passou entre os domésticos; detendo-se junto à cabeceira da cama. A espreita ansiando, apenas, uma hesitação da moribunda para ceifar-lhe à vida. Mas a grande fidúcia que possuía em Deus a fez acreditar, que nenhum mal lhe aconteceria. Foi nesse instante que viu uma forte luz aparecer diante de seu leito, e de seu átrio uma criatura surgiu; envolto em uma luz forte e reconfortante, parecia feliz, surgira entre a luz com um sorriso. Sim, era o falecido visconde. Porém não possuía a mesma aparência de quando morrera; a viscondessa lembrava-se do marido ainda deitado dentro do caixão. Mas por obra da natureza, ou dos ares celestiais, o falecido visconde, aparecera diante de seus olhos, com vida, como se não houvesse de fato morrido. Seus olhos transbordavam luz, vida e alegria. Nem de longe parecia o velho visconde que fora enterrado há anos. Seu semblante duro e obstinado, sua aparência envelhecida, havia desaparecido; mas uma figura bonita, alta e galante havia surgido. O visconde estava tão mudado, que Helena não lhe havia conhecido. –– Sentes o cheiro de jasmim? –– Indagou a governanta da casa, outra criada que estava próximo a ela.
–– Oh, se sinto! –– Respondeu a camareira. –– E parece-me que até a áurea desse quarto mudou?! Antes estávamos todos os sentidos calafrios, e a temperatura aqui estava mais baixa que em outros cômodos.
–– Vossa mercê também sentiu Bernadette? Achei que estava ficando louca. –– Meneou outra criada.
–– Pois é, parece-me que algo aconteceu nesse quarto. –– Disse a governanta em tom de prece –– Pois o frio mórbido foi trocado por uma temperatura mais amena. E agora estou sentido um cheiro de flores silvestres... E olha que estamos um pouco longes dos campos.
–– De onde pode ter vindo esse cheiro? –– Arrematou outra criada.  
–– Veja como a viscondessa sorri. Credo em cruz!
Foi então que a viscondessa olhou para a menina e disse, entre dentes, pois temia que os criados as ouvissem.
–– Veja minha querida... esse é seu avô. Quer dizer?! –– Os olhos dela se moveram rapidamente dentro do globo ocular. –– Esse é seu avô na juventude. Quando nos casamos ele era exatamente assim. –– A imagem sorriu novamente para as duas. –– Ele era galante, não era querida?
–– Oh, se era?! –– Helena sorriu –– Ele é lindo e seu sorriso, é ainda mais bonito...
 A imagem era de um rapaz galante, com vestes brancas, acompanhado por mais duas pessoas. Decerto, amigos da luz, que vieram buscá-la. Emocionada não conseguiu conter as lágrimas; não tardou para que seu rosto ficasse coberto por lágrimas. A menina havia visto, também, os espectros. Assusta e com medo de que os criados saíssem correndo calou-se. O visconde ainda jovem se aproximou da cama olhou para a neta, para a esposa, e estende-lhes a mão. Em um primeiro momento, a viscondessa, temeu, mas depois viu que era o mais certo a fazer. Até porque ele não estaria ali se não fosse para buscá-la. Os olhos da menina se encheram de lágrimas, quando o falecido visconde, colocou a mão sobre seu ombro, inundando-a de uma sensação maravilhosa. Seu corpo que até então estava frio esquentou-se. A alma olhou-a nos olhos e sorrindo disse: Não temas minha cara. Sei o quanto amas sua avó, mas, é chegada a hora dela partida. Já tendo cumprido sua trajetória aqui, no Plano Terrestre, agora já é chegada a hora de partir. 
–– Levante a mão! ... –– Helena ergueu-a. –– Prometa-me diante de meu leito de morte e perante nossa Senhora de Fátima... –– Disse a viscondessa com uma voz entrecortada... –– Que jamais deixará de ser feliz... tu ainda és uma menina. Todavia, quando se tornar uma senhorita, e regressar ao seio de sua terra, algo lhe sucederá! Algo que mudará completamente o rumo de sua existência. –– A velha deu mais uma pausa, no que dizia, e concluiu –– Jamais deixe que alguém conduza sua vida. Pois quem conduz o teu e o meu caminho é o nosso Senhor e Criador, Jesus de Nazaré. Cuidado com as armadilhas do coração. Respeite as ordens de tua mãe, visto que somente assim terás vida boa e longa na terra. É o mandamento de Deus: “Honrar pai e mãe, para que seus dias se prolonguem na terra! ” – Essas foram suas últimas palavras, desfalecendo em seguida. Assustada Helena começou a sacolejar a viscondessa freneticamente como se aquilo a trouxesse de volta.
–– Não adianta sinhá... essa é a vontade de Deus Pai. Não podemos fazer nada, apenas rogar por sua alma –– disse Magnólia chorando a par.
–– Cale a boca.... Pois tu não sabes o que dizes! –– Disse Leninha, aos prantos. –– Saía daqui, agora! ... vai ver se o médico chegou?! –– A escrava saiu, deixando-a a sós. Assim que a escrava fechou a porta, a viscondessa recobrou os sentidos e disse-lhe:
–– Não precisa gritar com a moça, ela tem toda a razão... O Criador me chamou! –– A viscondessa virou para o lado. Os olhos toscanejaram e, por fim, deu seu último suspiro.
–– Vovó... Vovó... não morra, não, vovó... por favor! Quem cuidará de mim?
A última visão que a menina teve da avó: foi ela saindo de mãos dadas, ao jovem visconde, pelas portas francesas. Depois disso a viscondessa desapareceu dentro da luz, assim como os outros seres.
Quando o médico chegou, foi apenas para reafirmar o que todos já sabiam, a viscondessa havia morrido. D’Anna havia partido, e agora, o que seria de Helena?! Pobre menina, não sabia o que fazer sua vida agora era uma incógnita; sentia-se perdida, em um país que se quer era o seu. Seus parentes, mais próximos afetivamente, estavam a milhas de distância, um longo e extenso mar os separavam. A menina sentia como se tivessem enfiado uma adaga em seu peito, era uma dor muito grande e forte, primeiro perdera o pai e agora a avó.
 Logo após a partida do médico, a menina Helena, deixara o quarto e fora à cozinha. Lá ordenou para que o cocheiro fosse buscar o advogado da família. O senhor Juscelino, não tardou a chegar, cuidou dos preparativos para o velório e sepultamento; mandaram emissários a todas as províncias de Portugal, onde é claro, a viscondessa possuía semelhantes. Depois que o advogado deixou a casa; Helena seguiu para seus aposentos, onde se trancou. Chorou a tarde inteira. No quarto, onde estava o corpo inerte de sua avó, ficaram apenas as criadas que foram incumbidas dos preparativos fúnebres. Depois que lavaram a resposta mortal, vestira-lhe uma mortalha negra de cetim; e a viscondessa foi posta em seu caixão. Depois o caixão foi posto sobre a mesa de jantar, onde eram realizados os funerais. Foi, apenas, no início da noite, por volta de sete horas da noite, que as primeiras pessoas começaram a chegar à mansão. Pessoas de todos os lugares de Lisboa, indivíduos, que queriam render suas últimas homenagens à viscondessa.
–– Meus pêsames, senhorita Helena –– murmurou a baronesa Victória.
A noite passou. No dia subsequente, assim que o sol nasceu, saíram todos por Lisboa em uma romaria, até à igreja central. Antes do sepultamento foi realizada uma missa, de corpo presente, e o corpo foi sepultado na cripta da igreja. Depois seguiram todos, os parentes, para a mansão da viscondessa. No dia seguinte as tias e primos regressaram a suas províncias. Abandonando, tão somente, Leninha na casa. Nos seis dias posteriores, ao velório, a guria passou dias e noites chorando, não comia, não queria se banhar, nem mesmo saía do quarto. A princípio deixou os criados assustados, temiam que ela morresse de consternação e depressão. Deixou seu aposento, somente, em parcas ocasiões; sendo para ir à biblioteca, a casa de banho, a cozinha, falar com alguma criada, ou no dia que foi realizada a missa de sétimo dia, na Basílica do Coração de Jesus. Mas trancou-se novamente, em seus aposentos, após a missa. Durante aquela noite não conseguiu dormir, passou a noite lamentando-se, tentando digerir os episódios dos últimos dias.
Helena teve uma grande surpresa quando foi acordada na manhã seguinte por Magnólia, a criada, lhe disse: que o advogado a aguardava no escritório dentro de alguns minutos. Ela ergueu-se, vestiu-se e seguiu para o escritório; assim que abriu a porta deparou-se com Juscelino sentado, na cadeira da escrivaninha. 
–– Bom Dia, mademoiselle... –– Assim que avistou a menina o criado se ergueu em sinal de respeito. –– Como tem passado?
–– Bem, nobre senhor Juscelino! –– Afirmou enquanto se acomodava na marquesa. –– Claro, que conforme Deus quer...
–– Bom, saber que a senhorita está melhor. Estava justamente esperando sua recuperação, pois precisamos tratar de negócios importantes. –– O advogado abriu uma valise e de dentro retirou um envelope pardo.
–– Pois, não senhor? –– Disse ela ainda consternada pela noite passada. –– O que o trouxe aqui, a esta hora?
– Desculpe-me, senhorita, por incomodar-lhe a essa hora do dia; mas fui encarregado por sua avó, “que Deus a tenha”. Antes de morrer havia dito: que se morresse antes do regresso da senhorita ao Brasil. Era para mandá-la imediatamente ao colégio de freiras... como havia prometido a sua madre, devo cumprir. Agora mesmo!
–– Oh, meça... – Murmurou ela. –– Como assim? Terei que ir para um colégio de freiras?!
–– É isso mesmo, senhorita!
–– Eu tinha conhecimento que teria que ir para o colégio, mas acabei de perder a minha querida avó?! Não posso nem mesmo esperar passar o luto?
–– Sinto muito... –– Meneou-o. –– Mas isso foi planejado com sua mãe e ela pediu que assim fosse.
–– Está! Mas o que devo fazer agora?
–– Apenas suas malas!
A menina deixou o cômodo correndo, seguiu pelos corredores, aos prantos. O mundo havia desmoronado diante de seus olhos.... Ficara desnorteada, sem saber o que fazer! Caiu no choro, jogando-se sobre um canapé, disse:
–– Essa foi à última vontade de minha avó? –– Perguntou ela, enquanto secava o rosto.
–– Sim, senhorita! Lamento, mas esse foi o seu pedido.
–– Com licença?
–– Mas isso não é tudo, em seu testamento. A amada viscondessa deixou-lhe boa parte de sua herança! Incluindo está casa, a casa do Douro, a casa de Sintra, joias de família, uma quantia considerável de dinheiro e três milhões em barras de ouro, no banco de Lisboa.
Após a réplica Helena saiu desnorteada pelos corredores, aos prantos, teria que respeitar o testamento; não tinha para onde nem para quem recorrer. Para piorar, a situação, estava sobre a tutela do advogado. Durante toda tarde e noite passou arranjando suas coisas; partiria no dia seguinte, assim que o sol abrolhasse no horizonte. A noite passou. No dia seguinte, ainda nas primeiras horas do dia ela e Magnólia partiram para o colégio de freiras. Onde seria sua moradia nos próximos anos.

***

Os dois primeiros meses, em que passou no colégio, foram para ela a mesma coisa que ser sepultada viva. Era realmente difícil para uma sinhazinha, como ela, que estava acostumada à vida agitada da nobreza; se acostumar com uma vida simples sem luxo. Regada às compras, passeios, convescotes, saraus e idas a teatros para assistir a peças, óperas. Deixar de uma hora para outra a vida agitada e mergulhar em uma vida de clausura e orações; mesmo para ela que não perdia uma missa dominical, ao lado da viscondessa, e obedeciam às leis da Igreja, era difícil...

domingo, 21 de janeiro de 2018

O retorno a Lisboa


Ae neta passaram mais alguns dias, com seus parentes, tempo suficiente para participarem de saraus e festejos. O último lugar em que esteve, em passeio, foi ao Palácio da Pena, ou, Convento de São Jerônimo; lugar lindíssimo, que mais parecia saído dos contos de fadas. Foi também dentro daquelas paredes que Anna Helena fez uma linda e agradável descoberta. Sua avó, a viscondessa, sua tia-avó, a condessa, e suas primas de segundo grau; participaram de uma confraria onde, Helena descobriu que faz parte de um clã de feiticeiras. A viscondessa lhe contou que as mulheres de sua família vinham de uma ascendência direta de Rea Silvia, uma princesa da família real de Alba Longa. Essa princesa havia dado origem à linhagem que ela fazia parte, que era o clã Vestal. Falou tudo sobre a origem de suas antepassadas, das magias que as cercava; das parentas que morreram durante a Santa Inquisição. Da perseguição que sofreram em Roma, e do legado que deveria levar a partir daquele momento. Mas que só sentiria realmente, o poder, que possuía a partir de seus 17 anos, quando seria iniciada em um Sabbat. Helena ficou assustadíssima, mas digeriu tudo que a avó dizia, sem o menor problema. Parecia já esperar por aquele momento, visto que, desde bebê sabia ser diferente das outras meninas. 
–– Mas, quando isso acontecerá, vovó? –– Helena deixou-se cair sobre um banco de pedra.
–– No nascer da última lua, no primeiro dia, de seu décimo sétimo aniversário.
–– Será nesse dia que me tornarei uma bruxa?
–– Não será propriamente uma bruxa, mas uma feiticeira da Vestal. –– A viscondessa havia sentado a seu lado. –– Nesse dia você descobrirá quais são os seus dons, e eles serão potencializados. Creio que você já os tenha percebido, mas não sabe ainda de que forma eles se manifestaram.
–– Pois é, sinto-me diferente. –– A menina Helena já se mostrava mais animada, com a descoberta.
–– A partir desse dia você se tornará uma iniciada, nas magias da lua. –– A viscondessa pegou as mãos da menina e as cariciou – Será no dia de sua iniciação, no Sabbat, que vossemecê receberá um pseudônimo para as reuniões das feiticeiras.
–– Estou feliz em descobrir essas coisas. –– Helena sorriu –– Agora, entendo, por que me sentia diferente, possuía visões e um sentimento diferente pelos outros. –– Você não sabe, mas sua criada Magnólia não foi lhe dada à toa. Ela possui a missão de lhe proteger.
A conversa entre as mulheres da família Albuquerque durou mais algumas horas; a viscondessa esclareceu todas as dúvidas da menina. Helena saiu alegríssima, depois de tudo que ouviu da boca de sua avó. D'Anna não lhe escondeu nada, explicou para Leninha o que mudaria em sua vida após seu décimo sétimo aniversário; quais seriam suas graças divinas. Proferiu até sobre a marca de nascença no punho direito. Helena tinha uma pequena marca de nascimento, em forma de auréola, no punho esquerdo. Helena e a avó passaram mais alguns dias ali. No dia primeiro de maio regressaram para Lisboa; duas semanas após seu retorno a Lisboa a viscondessa, recebeu um convite especial. Ela e a neta haviam sido convidadas para assistir a um conserto no teatro São Carlos. A Grand Ópera francesa iria apresentar a obra, A Megera domada, de William Shakespeare para o Rei-consorte D’ Fernando II.
Na noite do espetáculo o Theatro Real de São Carlos estava cheio de membros da alta sociedade lisboeta. Tanto os salões, quanto os corredores pareciam ter-se tornado passarelas da alta moda europeia, tudo estava grandioso. Os membros da nobreza e da burguesia, não economizaram nos trajes. Damas com suas luminosas, farfalhantes e belíssimas crinolinas, de vários tecidos e das mais variadas cores e modelos. Naquela noite, algo era regra: a disputa entre às senhoras, sobre qual crinolina era maior, era uma mais rodada que a outra. Sem falar nas tiaras, ornatos de cabelo, capas de veludo, joias, que pareciam brigar entre si. Barões com suas digníssimas esposas, baronesas que usavam tiaras, condessas e viscondessas exibiam joias deslumbrantes. Os jovens desfilavam seu júbilo, espalhando alegria pelos salões; e os anciões traziam junto à memória, suas experiências de um passado folgazã e risonho. Como àqueles jovens, que agora vivem vidas com frenesi, como se não houvesse amanhã.
Helena usava um lindo vestido de musseline verde-esmeralda, com aplicações em renda chantilly na orla, já no decote sianinhas; no cós uma fita de cetim larga, na cor maça verde, marcava bem a cintura. A saia-balão amplíssima. Cabelos presos em uma redinha e uma grossa trança; presa no alto da cabeça, como se fosse uma coroa cravejada com joias em formato de estrelas e rosas. Já a viscondessa usava um vestido discreto e sóbrio, sendo viúva deveria trazer a marca de sua viuvez.
Os funcionários, do teatro, espalharam entre os nobres o início do espetáculo; tão logo que houve o anúncio, os espectadores seguiram para seus lugares. Primeiro: entraram os que ficariam junto ao palco, depois, nobres e burgueses seguiram para seus camarotes de luxo. Antes mesmo que os primeiros atores entrassem em cena, houve um período de silêncio. As trombetas soaram e a rainha Maria II, e seu esposo, o rei consorte D’ Fernando II, ingressaram e se acomodaram no camarote central. Assim que os Soberanos se acomodaram, um novo silêncio tomou conta do teatro; um sinal sonoro foi ouvido, a cortina de veludo vermelho, com franja dourada, foi aberta. Eis que das profundezas do santo tablado surgiram atores, que deram início ao espetáculo.
Helena e a avó estavam acomodadas, no camarote, ao lado da família real portuguesa. D’Anna não havia percebido, no entanto, Helena estava sendo cortejada por um guapo mocetão. Era um rapaz moreno, alto, forte, de belas feições e herdeiro de uma família rica e tradicional portuguesa. Não era a primeira vez que os dois se viam, já tinham tido a oportunidade de trocarem olhares, algumas vezes. Desde o primeiro encontro os dois sentiram algo diferente; sempre que trocavam olhares, sentiam o coração saltar, as mãos tremiam, os olhos se enchiam de lágrimas e o peito palpitava. Depois da primeira troca de olhares, o rapaz, estava decidido que falaria com a viscondessa, sobre um arranjo de casamento. Toda tarde, após o almoço, perto das três horas, ele, passava, em seu alazão, diante dos portões de ferro do solar da viscondessa.
Ao final do primeiro ato a alta sociedade regressou aos salões nobres. E entre uma taça de champanhe, um copo de gin ou de Vinho do Porto, esperaram o início do segundo ato que não tardou. Helena e o rapaz continuaram trocando olhares no segundo ato, no terceiro e no quarto, até que a obra chegou ao fim. Diante de aplausos calorosos, de pé, o espetáculo acabou. E sobre gritos de: BRAVO! BRAVÍSSIMO, BRAVO! Os espectadores foram deixando seus lugares e seguindo para as saídas. As cortinas se fecharam, os intérpretes da ópera começaram a deixar o palco. O público, aos poucos, seguia para os corredores, salões, anfiteatros e escadarias. Encaminhavam-se para as saídas. A escadaria principal estava cheia de senhores, senhoras, senhoritas, mocetões, pajens e damas de companhia, todos aguardavam suas carruagens.
 O coche, com o brasão da família Albuquerque, deteve-se ao limiar da escadaria principal. O lacaio desceu da boleia, abriu a portinhola, auxiliou a viscondessa e ajudou Helena. As duas acomodaram-se sobre almofadas de veludo carmim, então a portinhola foi fechada. Assim que tomaram assento, o cocheiro atiçou os cavalos com o rebenque, logo saíram aos trotes pela avenida principal de Lisboa. Logo o coche que elas estavam fez a volta no Passeio Público. Foi naquele exato momento que uma chuva torrencial desabou sobre toda Lisboa, causando grande confusão nas ruas.
–– E agora, vovó, o que faremos? –– Murmurou Leninha. –– Ah... ainda bem que a chuva aguardou a nossa entrada no coche?! Ou agora estaríamos ensopadas. Ah... ah... ah! ...
–– É mesmo, minha filha?! –– Respondeu à velha.
O coche, que as carregava para casa, demorou um pouco mais que o normal para percorrer o caminho, que habitualmente em dias normais, demoraria pouco mais de meia hora. Levou cerca de uma hora para percorrer a velha e a nova Lisboa, a mansão da viscondessa ficava a meia hora da capital portuguesa. Tempo que avó e neta usaram da melhor forma, usou para jogar conversa fora falar sobre coisas amenas, contar histórias velhas; idealizar sonhos para o futuro. A viscondessa aproveitou também para elucidar, a neta, sobre o Dom Divino, que a menina havia recebido da deusa Geia. A menina se mostrou animada, assustada às vezes, mas muito feliz por ter descoberto que era uma espécie de feiticeira. Não uma feiticeira como as dos contos de fadas; histórias que ouvira desde nova da boca da mãe e da professora. Seu dom vinha do sangue, sangue de mulheres guerreiras e fortes, Helena estava estupefata com tantas descobertas. 
–– Gostei muito de descobrir que sou uma feiticeira. –– Helena que estava ao lado da avó, ergueu um dos braços e de um salto só a abraçou. –– A senhora bem sabe que a amo muito. Amo-a ainda mais depois de descobrir essa faceta das mulheres de nossa família.
A viscondessa sorriu e abraçou a neta. Foi um abraço apertado, afetuoso e duradouro. Os olhos da velha senhora se encheram de lágrimas e suas últimas palavras, antes, do cessar da marcha dos cavalos, foram:
–– Faça bom uso desses dom. –– A viscondessa pegou as mãos da neta e sobrepôs as suas. Depois voltou a encará-la e concluiu –– usem no auxílio de suas irmãs, amigos e pessoas queridas. –– D’Anna que se mantivera impassível, até então, agora demonstrava grande afeto. –– Esse dom divino, entregue a nós pela mãe terra, deve ser usado sempre para o bem. Jamais deve usá-lo para obter favores para si, ou de forma a obter lucro, ou com leviandade. Pense apenas nos seus coirmãos. São poucas as pessoas que possuem a graça de ter esse dom, mas as mulheres da nossa família foram agraciadas.
–– Pode deixar amada vovó. Jamais farei algo que venha interferir neste dom. Usarei sempre para o bem dos outros... E muito obrigada por ter contando-me.
–– Este Dom, das mulheres de nossa família, vem desde a Grécia antiga; ainda quando os deuses do Olimpo desciam em Atenas, para mostrar aos atenienses os seus poderes.
–– E quem é a deusa ou o deus criador desses dons? –– Helena mostrou-se interessada.
–– Cada mulher, de nossa linhagem, recebeu um dom e cada dom vem de um deus diferente. –– A viscondessa novamente pegou as mãos da neta. –– Mas o seu especificamente vem da deusa Vênus, a deusa do amor e da beleza.
Oh... oh... oh! Disse o cocheiro para que os cavalos parassem diante da casa.
O coche parou diante da escadaria principal, o lacaio desceu da boleia, abriu a portinhola. No alto da escadaria a porta foi aberta e do átrio da casa surgiu uma criada com um guarda-chuva. A criada desceu as escadas e parou diante da portinhola, primeiro desceu a viscondessa, a criada a conduziu escada acima e a deixou debaixo do alpendre; depois voltou e buscou Helena, que a aguardava junto à porta. Assim que as duas foram introduzidas na casa à criada pediu licença e se retirou. Paradas ainda no hall de entrada avó e neta sacudiram as volumosas saias, havia-se molhado um pouco. As duas não queriam molhar o carpete da escadaria interior.
–– Que chuva! –– Afirmou uma das criadas, que as auxiliava na retirada das capas. –– Graças ao bom Deus –– a criada juntou as mãos em forma de prece ––, que as senhoras conseguiram regressar em segurança. –– A criada ficou novamente em silêncio, e como se quisesse puxar algo na memória, disse. –– O céu bem que mostrava. O vermelhão no céu, ontem, mostrava que hoje teríamos chuva.
–– É mesmo! –– Respondeu à velha. –– Peça para Marselha preparar-nos um banho, não podemos dormir assim; ou pegaremos uma pneumonia. Deus livre-nos de ficarmos tísicas. –– A viscondessa olhou para o teto, como se olhasse para o céu, e fez o sinal da cruz.
 Depois que retiraram as pesadas capas de veludo molhado das costas, viscondessa e neta, foram conduzidas para seus toucadores. Banharam-se, vestiram-se e após uma pequena ceia foram conduzidas, por suas criadas pessoais, a seus leitos.
A paixonite de Helena e do rapaz não pode durar muito, pois logo avó e neta tiveram que partir para Portugal novamente.

***

Uma bela e deleitosa harmonia foi se formando, com o passar do tempo, entre avó e neta. Não foi à toa que a viscondessa, avó da menina, não mediu esforços, muito menos a quantia de dinheiro que seria gasto para fazer um sarau de apresentação. Helena estava, preste a completar quinze primaveras, estava se tornando uma mulher; e como tal, deveria ser apresentada a alta sociedade europeia.
Por amar a neta resolveu fazer um sarau digno dos palácios londrinos. Onde participaram de bailes de apresentação das jovens aristocratas inglesas. Não poupou dinheiro para atender todas as exigências do protocolo para bailes da nobreza inglesa. Mandaram vir de Paris vestidos novos, para a neta, vestidos das melhores casas de moda de toda França, sapatos novos, perfumaria, coisas de butiques de luxo. Foram, na verdade, três dias de festança regada com muita comida, bebidas das melhores adegas da Europa; pratos típicos da França, Itália, Alemanha, Noruega, Normandia, Portugal, Suécia e Espanha.
Helena no dia da festa estava bem ataviada. Optou por usar um vestido de veludo alemão, com aplicações em organza e renda francesa, na cor azul Royal; no pescoço uma gargantilha de diamante rosa e esmeraldas; na orelha, um par de brincos de diamante. A mão e os braços enluvados em uma luva de cetim branco, no punho um bracelete conjugado a gargantilha.
A viscondessa lembrou-se da noite que foi apresentada a alta sociedade londrina. Foi daquela mesma forma que estava sendo para a neta. O baile de debutante era o dia mais esperado para qualquer senhorita de abastada família; era o ponto alto de uma existência próspera e aprazível. Um sarau bem-sucedido poderia render, até, casamentos. Quantas não foram às meninas que saíram de seus bailes de apresentação, com casamento marcado. Os bailes de apresentação, na verdade, não passavam de vitrinas, onde moças eram praticamente leiloadas por suas famílias. Vivia-se em uma época, onde o que menos importava era o amor. Casava-se apenas por conveniência, para aquisição de bens, ou para manter bens em família. Onde jovens moças, que mal haviam saído dos cueiros, eram entregues a velhos. Era raro, praticamente impossível ver um casamento baseado exclusivamente no amor.
Casamentos por amor era visto apenas em casamentos de pobres e pessoas com menor poder econômico. Casamento, por amor, era coisa para pobres! Além de serem vistos, pelas senhoritas nobres e burguesas, apenas em romances que liam.

Helena sempre se mostrara contraria a todos os dogmas impostos pela sociedade, igreja. E assim como boa parte das moças de sua idade, sonhava: com o dia em que o príncipe encanto bateria em sua porta e a levaria no lombo de seu cavalo. Sonhadora, porém, determinada e de um gênio inconfundível. Uma mulher com ideias e atitudes além de seu tempo.

      Passeio por Sintra


No dia seguinte, após o café da manhã, a viscondessa Anna resolveu levar a neta para fazer um tour pelo país. A viscondessa Anna Albuquerque era conhecida por toda nata portuguesa, frequentadora assídua das casas de nobres e burgueses. Sabia se portar tanto diante da nobreza, quando da alta burguesia. Herdara o título e o brasão de viscondessa de seu falecido pai, que por sua vez recebeu do pai, avô de Anna. O título nobiliárquico estava na família a mais de 400 anos. Depois que se casara recebera o título de marquesa e baronesa títulos oriundos de seu marido; que possuía um alto cargo no governo português, grande amigo do rei D. Fernando II e da rainha D. Maria II, ou o Rei Artista como era conhecido.

***

A primeira parada do passeio foi o Porto, depois Torre de Belém, a Igreja de S. Roque; depois seguiram para o teatro São Carlos; passaram pelos passeios públicos e pelo Jardim de S. Lázaro no Porto; seguiram para os teatros D. Maria II, e S. João em Lisboa; além de visitarem a Sé de Lisboa e para terminar o castelo de S. Jorge. Helena foi levada pela avó ao convento, onde as filhas de nobres portugueses recebiam a educação secundária; o Mosteiro da Ordem das Clarissas, onde ela e Magnólia ficariam enclausuradas anos depois. A menina ficou deslumbrada com tantos lugares bonitos, a avó foi uma espécie de guia turístico, contou a história dos principais lugares de Lisboa. Depois daquele longo passeio, avó e neta, foram tomar chá e comer quitutes da culinária portuguesa na Confeitaria Nacional na Baixa de Lisboa. Passaram pela fábrica de pastéis de Belém e compraram uma dúzia para comer durante a viagem para Sintra.
Depois do longo passeio pelos monumentos históricos e passeios públicos de Lisboa, a comitiva da viscondessa seguiu para a cidade de Sintra onde possuía familiares. A Vila de Sintra é um lugar arrebatador cheio de lugares mágicos; castelos e palácios surgem no meio das matas e florestas de um verde magnífico, montanhas lindíssimas. Era um lugar formosíssimo e pacato. Possuía um vasto declive rochoso e beira-mares belíssimas. Um dos lugares mais mágicos recebeu dos Celtas o nome de “Serra da Lua”. Sintra também abrange a costa marítima de Cascais. O lugarejo foi habitando durante séculos pela nobreza portuguesa, em seus lindos e esplêndidos palácios, o lugar era mágico; todo palácio possuía jardins infindáveis, igrejas e o convento dos capuchinhos. O lugar inspira realmente um clima de conto de fadas, romântico e bem aconchegante para famílias.
Algumas horas depois a comitiva havia chegado a Sintra. Helena foi apresentada a seus familiares. Poucas horas depois, a menina, já estava entrosada com seus primos, primas e tios portugueses. Avó e neta ficaram hospedadas na casa da condessa Lucélia, irmã da viscondessa Anna. Cada uma recebeu um quarto; após o jantar seguiram para a sala de visitas, pois os primos da menina estavam curiosos para saber como era o Brasil.
–– Dizem que lá só tem matas e bichos. –– Indagou-lhe, a menina, Luísa –– Quando minha mãe disse que receberíamos uma prima vinda do Brasil, achamos que viria uma menina com modos de índios e que comia com as mãos. Assim como é descrito nos livros de história.
–– Não... –– Helena caiu na gargalhada –– É, assim que todos nos veem por aqui?
–– Pelo menos é o que nos passam nas aulas de história geral. –– Retrucou Gumercindo, um dos filhos mais novo da condessa. –– Dizem que lá só tem índio, negros e gente pobre...
–– Não é bem assim, não... –– Helena mostrou-se irritada –– É claro que lá possui muita pobreza, desigualdade e que ainda impera a escravidão. Mas possui muitos ricos e gente educada, lá também. Por exemplo, venho de uma linda e luxuosa fazenda do interior da Corte. Muitos filhos de fazendeiros veem para Coimbra estudar, na faculdade de Coimbra.
Os jovens decidiram ficar próximos ao piano enquanto Luíza, uma jovem loira, de estatura mediana, porte elegante, cintura fina e olhos de um verde profundo e com pouco mais de dezessete anos; tocava uma canção de Ludwig van Beethoven. Já as damas decidiram ficar distantes da algazarra dos jovens, escolheram um lugar sereno e sossegado ao lado da lareira, sentadas em uma marquesa saboreavam chá com biscoitos.
–– Veja só como é a juventude... parecem alheios a tudo que acontece a sua volta. –– Disse a viscondessa, enquanto olhava para a irmã.
–– Pois é, minha irmã! –– Respondeu a condessa –– Parece que vossa neta já está enturmada! Nem parece que conheceu os primos a menos de seis horas.
–– Helena é uma menina de fácil adaptação. –– Objetou a viscondessa. –– É uma doce criança, ainda não tive trabalho com ela.
–– Pois é! Quando os pais sabem ensinar e isso que acontece. –– A condessa olhava a menina que falava e gesticulava com os primos. –– Sem contar que é uma guapa rapariga.
–– É mesmo? Ela lembra bem meu filho... –– A voz da viscondessa tornou-se chorosa. Seus olhos se encheram de lágrimas.
–– Bem... –– Disse a condessa em tom de zombaria –– bem se vê que em nossa família a beleza é inerente de nossa gente. É algo que está em nossa genética, veja minhas filhas. E olhe para nós, somos senhora, mas ainda mantemos algum viço de beleza!
A conversa foi regada com chá e biscoita, depois da pequena ceia, o papo se estendeu até que o grande carrilhão deu suas dez badaladas. Neste momento a condessa decidiu que todos deveriam se recolher, e assim, seguiram para seus aposentos. A cama de Magnólia foi posta bem ao lado do leito de Helena; depois que as duas se trocaram foram se deitar.
No dia seguinte logo após o desjejum; desjejum, este, que mais parecia um banquete servido durante a Corte do rei Luiz XV. Na mesa, vários eram os tipos de bolos, pães, geleias diversas, compotas, pessegada, frutas, doces tipicamente portugueses entre outras iguarias. Naquele dia a casa havia acordado diferentemente dos outros dias, primeiro por causa das visitas, depois porque os próprios moradores estavam animados com o passeio que fariam, pelas terras de Sintra. Naquela manhã, a viscondessa e a condessa usavam vestidos em tons mais claros que o habitual. Anna usava um vestido turquesa escuro, já a condessa resolveu usar um traje mais puxado para o rosáceo.
 Assim que os primeiros raios de sol brotaram no interior dos aposentos, as jovens damas, filhas da condessa, levantaram-se e partiram para seus toucadores; aonde se banharam e vestiram trajes de passeio. As meninas decidiram usar vestidos à rainha Victória, com decote puritano, cinturas bem marcadas e saias com anáguas volumosas; na cabeça um coque trança baixo, o bonnet dava um toque especial ao traje. Após o café da manhã, o grupo, seguiu para o saguão da casa onde um coche os aguardava.
Marcava pouco mais de nove horas da manhã, quando a comitiva deixou as dependências da quinta. No barouche puxado por seis cavalos, que ia à frente, estava Helena, Mariana, Alexandra; já o rapaz ia ao lado do carro em seu alazão. Estavam todos descomedidamente bem vestidos, as moças usavam belos vestidos com saias volumosas. O mancebo vestia-se com trajes de montaria, mas não havia deixado seu estilo dandy; o rapaz aquela manhã havia optado por um traje típico de montaria; uma casaca preta, de veludo, um lenço amarado ao pescoço como gravata; colete, camisa branca, uma cartola de pelica, calças negras, como a casaca, e uma bota de montaria de couro negro e lustroso. As jovens damas traziam nas costas capas de veludo negro; e por causa do calor todas trouxeram sombrinhas. Em uma caleche, que seguia logo atrás, estava Magnólia, duas damas de companhia e um lacaio. 
Helena aproveitou o trajeto para admirar a paisagem da bela Sintra. O lugarejo estava realmente rodeado de palácios lindíssimos, o panorama natural possuía um quê... a mais. Era algo realmente fascinante, imagens que enchiam os olhos de quem as contemplassem com mais sagacidade. A todo o momento, as jovens e o rapaz, felicitavam conhecidos que passavam em carruagens e em cavalos. Algum tempo depois chegaram ao cume da rochosa encosta da serra de Sintra, onde ficava o castelo dos Mouros, lugar onde se iniciaria a turnê dos jovens. O carro parou; o rapaz e o lacaio auxiliaram as jovens a descerem. Depois que todos estavam em terra; seguiu pela entrada das ruínas, caminharam por muitos lugares da imensa muralha. Um dos lugares preferidos de Helena foi às ruínas da igreja de São Pedro de Canaferrim.  Depois de muito subirem e descerem escadarias de pedra, já cansados e com muita fome resolveram que deveria parar para fazer um lanche. Magnólia e as outras duas aias saíram à procura de um lugar, onde seus senhores pudessem fazer um convescote. Após algumas voltas encontraram um lugarzinho junto à cisterna, cisterna usada para levar água ao palácio Nacional de Sintra. Debaixo de uma árvore, as criadas, estenderam uma toalha colocando a refeição sobre ela. Anna Helena e seus primos sentaram-se e foram servidos. Um longo silêncio tomou conta do ambiente, até que Mariana quebrou o silêncio:
–– Ora, pois, pois.... Minha prima! –– Mariana olhou de forma interrogativa, para Helena –– O que achaste deste passeio? –– Murmurou enquanto estirava-se sobre o pano, que estava no chão. –– Gostou de conhecer as ruínas do castelo dos Mouros? Fala... se isso aqui não é a coisa mais linda que você já viu?! Não é que eu queira enaltecer-me, mas isso é muito lindo. – Adorei o dia de hoje... está manhã acordei preocupada, pois tudo isso me parece ser a anunciação de uma tragédia. Hoje de manhã avistei, na linha do horizonte, uma nuvem negra. – Helena reteve os olhos sobre o primo – Além da voz que ouvi ao pé do ouvido, dizendo: “Sua vida está prestes a mudar”.
–– Não há de ser nada, querida! –– Balbuciou o rapaz. –– Talvez, tenha sido apenas um sonho.
–– Que nada. Pareceu-me real, por demais! –– Anna Helena fez o sinal da cruz sobre o peito –– Meu Deus, o que será?
–– Deixe isso para mais tarde, agora vamos nos divertir. –– Mariana vendo o estado da prima, tentou levar o papo para outro rumo – Pois a vida é curta demais, para darmos ouvidos a essas coisas.
–– Que nada! Isso foi apenas um sonho... –– Murmurou Luísa, filha mais nova da condessa.
–– Não, não... O sonho foi bastante real, tenho certeza disso! –– Disse Leninha enquanto degustava um pedaço de pastel de Belém. – Vocês podem não acreditar, mas todas as vezes que tenho esse tipo de sonho, algo acontece! A última vez que tive um sonho igual a esse, meu pai morreu.
–– Ora, pois... Prima! –– Murmurou Azevedo, enquanto se benzia. –– Credo, até parece um agouro.
–– Isso não é agouro, meu primo, é apenas o que sinto! –– Concluiu ela, enquanto erguia-se do chão. – Acho que já é hora de partirmos, o crepúsculo não tardará a chegar.
–– Helena tem razão! –– Luísa, a mais moça, olhou para os outros –– É muito perigoso ficarmos por essas estradas à noite.
–– Por esses dias ouvi a história: de um salteador, que ronda os palácios de Sintra – Josefina – Mamãe não há de gostar de nos ver por essas estradas a noite. Há muito salteadores, e malfeitores, que procuram donzelas para fazer-lhes mal.
–– Qual?! –– Azevedo retrucou –– Vocês, não estão sozinhas eu estou aqui...
Todas as moças caíram na gargalhada. –– Ora, ora... será que temos aqui um grande homem, ou apenas um menino que não saiu dos cueiros? –– Mariana, a mais vela, fez piada com a cara do jovem mancebo. –– Me poupe dessa infâmia! –– Esbravejou ela –– Sóis ainda uma marica... Nem dos cueiros saiu.
–– Pois bem. –– Bradou ele, com voz grave –– Se não credes que sou macho, pois ais estão os nossos criados. –– Temos dois cocheiros e o lacaio.
 Depois daquele longo diálogo, as moças, se levantaram, bateram as migalhas que estavam sobre suas roupas e partiram em caminhada rumo às muralhas. As damas de companhia ficaram no local recolhendo tudo que estava sobre o solo. Meia hora depois as moças mostraram-se exaustas, suas roupas pesavam.
–– Vamos... vamos. Por favor, vamos embora! –– Mariana parou e se apoiou em um muro –– Já não aguento mais.... Minhas pernas doem... –– Murmurou Mariana.

Após as voltas que deram em torno das ruínas do castelo, os seis voltaram para os coches. As criadas já haviam preparado tudo, a cesta do convescote, já estava na boleia do coche. Assim que as moças se acomodaram em seus lugares, o carro partiu; rumo ao palácio da condessa.